Combustível

29set09

Os comentários de alguns visitantes deste blog e uma leitura nos jornais de hoje me fazem voltar ao tema Honduras.

Parece-me que os ventos agora sopram em favor dos apoiadores da remoção de Zelaya e dos críticos da postura do governo brasileiro.

Li e ouvi várias vezes entre a noite de ontem e a manhã de hoje as declarações do representante dos Estados Unidos em reunião da Organização dos Estados Americanos (“Retorno de Zelaya foi uma atitude irresponsável e tola”).

O jornal Estado de S. Paulo deu manchete ao americano: EUA condenam Zelaya e criticam “os que o ajudaram”.

Claro, os Estados Unidos não vêm com simpatia a “Chavização” da América Central. Seria um desconforto um aliado de Hugo Chávez fortalecido ali às franjas da fronteira sul dos EUA.

E parece que esse posicionamento dos norte-americanos deu mais combustível aos brasileiros que apóiam Micheletti.

Vejo esse posicionamento com muita preocupação. Continuo acreditando que, apesar de tudo, o que houve foi golpe. E golpes devem ser rechaçados com veemência, independentemente do jogo geo-político.

Como disse Sergio Leo, em artigo publicado ontem no Valor:

O surpreendente (…) é que, entre os críticos do governo brasileiro, algumas vozes vão ao ponto de defender o golpe de Estado praticado em Honduras. Assusta, porque mostra uma perigosa disposição, a de aceitar métodos condenáveis para livrar países de políticos indesejáveis.

Mas eu gostaria de comentar os comentários dos visitantes deste blog.

Em resumo, os visitantes argumentaram que 1) a remoção de Zelaya foi legítima 2) a remoção foi um “contragolpe”, não um golpe; 3) é inútil discutir a legitimidade do movimento que derrubou Zelaya.

Caros visitantes, discordo dos três.

1) É fato que Mel Zelaya vinha desrespeitando decisões judiciais. Como eu disse no post anterior, o moço não é nenhuma flor. Ao contrário, deu reiteradas mostras de que não tinha muito respeito pelas insituições.

Porém, não dá para legitimar um movimento que abusou da coerção (lembrete: prisão na madrugada e deportação) e que não respeitou o devido processo legal (houve espaço para o contraditório?). Isso é golpe. E deve ser reprovado.

Claro que desrespeitar a Justiça não é nada nobre. Mas isso não é justificativa para prender e expusar do país.

Assim fosse, deveríamos chamar os militares para o presidente da Câmara dos Deputados, Michel Temer, hoje mesmo. O deputado do PMDB de São Paulo está desrespeitando uma liminar do Supremo Tribunal Federal judicial concedida há 41 dias!!!!

Por conta dessa atitude do Temer (que se nega a franquear à Folha de S.Paulo acesso a notas fiscais apresentadas por parlamentares para morder a verba “indenizatória”), vamos mandá-lo para a Argentina, sem dar ao nobre parlamentar o direito de se manifestar, de se defender?

Claro que não. Há mecanismos para fazê-lo obedecer à determinação (exemplo: o procurador do Tribunal de Contas da União ameaçou denunciar o deputado por improbidade administrativa por conta do mesmo objeto e da mesma atitude).

2) O Zelaya não fechou o Congresso, não interveio no Judiciário. Portanto, não deu um golpe. Assim, não há que se falar em contragolpe.

3) É, sim, extremamente útil discutir os cotecimentos de 28 de junho. Parece-me que a única tentativa de diálogo em Tegucigalpa se deu poucas horas após o retorno de Zelaya. A proposta seria a de renúncia dupla: Mel Zelaya e Roberto Micheletti anunciariam que abriam mão da Presidência.

Pois bem, se a remoção de Zelaya tivesse sido legítima, tal proposta seria razoável. Como se tratou de um golpe, tal acordo é impossível.

Dito isso, vamos à postura do Brasil: acho que o governo fez bem em receber o presidente deposto. É irrelevante discutir se o governo Lula sabia ou não dos planos do rapaz.

Agora, é bem verdade que o Lula precisa mandar o Zelaya se comportar. A Embaixada pode e deve servir de abrigo a um homem vítima de golpe, mas devem permanecer lá apenas ele e sua famíla.

Relatos indicam haver dezenas (talvez centenas) de simpatizantes lá dentro. Ouvi dizer que já houve até furto de celulares na Embaixada Brasileira. Aí não dá, né?

E alguém tem que dizer ao Zelaya que ele precisa parar de inflar a população. Além disso, o presidente deposto tem que ceder em algo. Os fatos indicam que há forte resistência dentro de Honduras a seu retorno ao posto.

Para completar, os EUA já sinalizaram que estão mais para o lado dos golpistas do que para uma postura pró-Zelaya.

Portanto, é preciso aproximar posições. Ninguém estão tão forte assim para se impor.

Agora, o que ocorreu em 28 de julho foi golpe. Ah, isso foi.



9 Responses to “Combustível”

  1. Camarada, Zelaya tem que ceder no que? Fica esta a pergunta. No que ele tem que ceder? Em voltar ao poder, para o cargo para o qual foi eleito? Em aceitar voltar sem qualquer cargo e que se consume o golpe?

    Zelaya não exige nada além do que é seu direito, voltar ao poder.

    A posição dos EUA é lógica, sempre apoiaram golpistas, eles mesmos são responsáveis pelos golpes da AL, não seria diferente hoje, mesmo que Obama diga A, seus acessores fazem B e isso não vai mudar.

    Foi golpe, dos mais canalhas e descarados e, hoje, só vejo como saída algo além da via diplomática, que se mostrou insuficiente.

    http://tsavkko.blogspot.com/2009/09/inutilidade-do-multilateralismo.html

    O multilateralismo vem se mostrando inútil para resolver a questão.

    • 2 Fabiano Angélico

      “Ceder” não quer dizer não voltar ao poder. Também acho que o Zelaya tem direito ao posto de presidente. Mas o que eu defendo é a via politicamente mais viável. O Zelaya demonstrou não ter força suficiente para voltar incondicionalmente. Então, alguma aproximação terá que acontecer. Não digo nem um governo de coalizão. Talvez ele terá que abrir mão do referendo.

      • Fato, o referendo é um ponto em que ele pode ceder, mas ainda assim é difícil vislumbrar tal coisa. Zelaya não parece ser muito fácil de convencer e de negociar, especialmente levando em conta que ele tem a razão do lado dele, pois mais que isto não demova os golpistas.

    • 4 Leonardo Brito

      Eu ia escrever
      “os EUA SEMPRE foram a favor dos golpistas na América Latina, por que agora seria diferente?”

      Porém o Raphael foi mais rápido…

      O máximo que posso acrescentar é que a Inglaterra vai ratificar a posição dos EUA, independentemente do que pensa a população, como sempre.

  2. 5 Rodrigo

    Raphael, não é porque ele foi eleito que ele pode fazer o que ele quer. Leis existem para ser cumpridas, especialmente pelo presidente. Veja o que diz o artigo 239 da constituição hondurenha:

    ARTICULO 239- El ciudadano que haya desempeñado la titularidad del Poder Ejecutivo no podrá ser Presidente o Designado.

    El que quebrante esta disposición o proponga su reforma, así como aquellos que lo apoyen directa o indirectamente, cesarán de inmediato en el desempeño de sus respectivos cargos, y quedarán inhabilitados por diez años para el ejercicio de toda función pública.

    Destaco a parte “cesarán de inmediato en el desempeño de sus respectivos cargos”. É óbvio que mandá-lo para fora do país foi exagerado, mas a remoção do Zelaya do poder foi absolutamente correta e condizente com a constituição de Honduras.

    • Não, Rodrigo, não foi correta. Primeiro lugar, ele ia fazer uma consulta sem valor legal, isto não é crime. Ele ia consultar se o povo queria um referendo. Este referendo sim teria validade e poderia confrontar a constituição.

      Mas, Zelaya sabia que, tendo amplo apóio na Consulta, o povo pressionaria pelo referendo. A própria constituição tem um “que” de inconstitucional ao afirmar que ela não pode ser modificada. COmo assim? Constituição feita para ser eterna? Isto não existe.

      No mais, se existiam mecanismos para tirar Zelaya do poder, me explica porque o golpe? Porque tirá-lo do poder no meio da madrugada, o prenderem e o exilarem? Se tinham a legalidade por trás, porque os golpistas não a usaram?

      Qualquer argumento acaba quando se chega ao ponto princial: Se haviam mecanismos legais para tirar Zelaya do pode,r porque o golpe?

      tsavkko.blogspot.com

  3. Fabiano, cuidado com a petição de princípio: você assume que foi golpe para construir uma narrativa provando que foi golpe. Exemplos, do seu texto: “[c]omo se tratou de um golpe”, “homem vítima de golpe”, “o lado dos golpistas”, e “ao ponto de defender o golpe de Estado” (esse último do Sergio Leo). Se você parte do princípio de que foi golpe, a justificativa é aceita só por quem assume a mesma premissa. A única honrosa exceção é essa:

    Porém, não dá para legitimar um movimento que abusou da coerção (lembrete: prisão na madrugada e deportação) e que não respeitou o devido processo legal (houve espaço para o contraditório?). Isso é golpe.

    Aqui, sim, há um argumento que justifica o uso da palavra “golpe” [*]. Supondo que eu não saiba o que é golpe, e aceite sua definição (abuso de coerção e desrespeito ao devido processo legal). Logo adiante você diz:

    2) O Zelaya não fechou o Congresso, não interveio no Judiciário. Portanto, não deu um golpe.

    Agora eu fiquei confuso, pois até onde eu sei os militares também não fecharam o congresso nem intervieram no judiciário.

    Outro problema é o tu quoque (a falácia de responder a um argumento dizendo “mas você também”): o fato do sr. A (no caso Michel Temer) pintar e bordar não impede que critiquemos o sr. B (Zelaya) quando ele pinta e borda [*].

    [*] Você está usando a consituição brasileira para criticar o processo hondurenho: o que é o devido processo legal em Honduras é o que está definido na Carta deles. O que acontece com quem desrespeita liminares também. Não vamos relativizar as constituições.

    De mais, concordo com muito do que você disse, e diz.

    um abraço,
    Leo

    • 8 Fabiano Angélico

      a – O governo Micheletti não interveio no Legislativo nem no Judicário. Foi “só” no Executivo.
      b – A comparação Temer-Zelaya não tem, nem de longe, o intuito de criticar as críticas ao Zelaya. O objetivo era o de demonstrar o desequilíbrio entre o ilícito e o remédio
      c – Devido proceso legal está definido no Artigo XI da Declaração Universal dos Direitos Humanos:
      1. Toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa.
      2. Ninguém poderá ser culpado por qualquer ação ou omissão que, no momento, não constituíam delito perante o direito nacional ou internacional. Tampouco será imposta pena mais forte do que aquela que, no momento da prática, era aplicável ao ato delituoso.

  4. Bom, acho que podemos concordar com algumas coisas:

    . Pela Constituição de Honduras, é ilegal fazer qualquer medida que incite, promova ou apoie o continuísmo ou reeleição para presidente (artigo 42).
    . Pelo artigo 374, qualquer plebiscito ou referendo que possibilite a reeleição é inválido.
    . Pela artigo 239, um presidente não pode se reeleger nem tentar mudar essa lei. E atenção: se tentar, perde imediatamente os cargos e fica impedido por 10 anos.
    . Existe também uma lei que proíbe realização de plebiscitos no período entre 180 dias antes e 180 depois de eleições.
    . Essa constituição de Honduras é esquisita, mas é a constituição deles.
    . O Supremo Tribunal de Honduras disse que a tentativa de Zelaya de promover o plebiscito era ilegal.
    . Zelaya mandou o processo seguir, desrespeitando essa decisão.

    Até aqui, temos caracterizado os erros do moço. Pelo artigo 239, vemos que ele deveria ser deposto. E a partir daqui começam os erros de Micheletti e cia (você os chama de golpistas, eu chamo de contragolpistas).

    . Zelaya não passou por um processo de impeachment. Isso não existe em Honduras. Aliás, não há nenhuma explicação de como isso deve ser feito pelas leis do País.
    . Zelaya foi retirado de casa e expatriado, ferindo leis internas e internacionais. Se estava de pijamas ou de terno, isso é irrelevante.

    E depois disso começam os erros externos (ou seja, brasileiros, venezuelanos, da OEA, etc) e um retorno super estranho a Honduras, mas aí já é outra história.


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